Alberto Handfas (prof. Economia Unifesp; diretor Adunifesp)
janeiro de 2023
As perdas inflacionárias e a luta por recomposição salarial
1. Os salários dos docentes das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) foram corroídos pelo Golpe de 2016, estando hoje (início de 2023) com uma perda inflacionária de 36%. Isso porque, desde então, nenhum dos golpistas de plantão – nem Temer, muito menos Bolsonaro – permitiu qualquer recomposição inflacionária aos Servidores Públicos Federais (SPFs).
2. Durante os governos Lula e Dilma (2003-15), houve acordos periódicos (em geral tensionados por movimentos grevistas) de recomposição de perdas inflacionárias que permitiram a cada segmento de cada carreira/categoria de SPF: (i) entre 2003 e 2006, recuperar parcialmente perdas impostas no período FHC; e, a partir daí, (ii) entre 2007 e 2017 manter seu poder de compra mais ou menos (com oscilações) estabilizado.
O último reajuste de recuperação de perdas inflacionárias ocorreu com o acordo entre os sindicatos dos SPFs e o governo Dilma em 2015. Nele, a reposição das perdas inflacionárias do período 2013-2015 fora escalonada – a depender da opção de cada sindicato dentre os SPFs – em parcelas: duas no caso dos docentes (jan/2016 e jan/2017) que totalizaram uma reposição linear (igual a todos os segmentos da categoria) de 10,8%. O reajuste anterior, que recuperara a inflação pré-2013 e acordado em fins de 2012, fora parcelado entre 2013 e 2015.
3. Um novo acordo deveria ocorrer em 2017 para repor as perdas de 2016-17. Mas, com o golpe, o ódio governamental aos serviços públicos, ao funcionalismo e aos direitos trabalhistas em geral prevaleceu. Assim, Temer – sobretudo com a aprovação do Teto (EC-95) – passou a rejeitar qualquer reposição inflacionária. E o mesmo ocorreu nos quatro tenebrosos anos do presidente genocida. Assim, a inflação (no acumulado do IPCA entre 2016 e 2022) já derreteu mais de um terço dos rendimentos dos SPFs, incluindo a docência.
4. A título de ilustração, as figuras 1 e 2 mostram a evolução do Salário Total (Vencimento Básico + Gratificações + Titulações etc; assumindo que o docente tenha conseguido obter sempre todas as gratificações do período FHC possíveis) real (deflacionado, em valores de dezembro de 2022) de alguns segmentos mais importantes da categoria do Magistério Superior (MS). Pode-se resumir tal evolução em quatro períodos:
Figura 1: Evolução dos Salários do Magistério Superior (Docentes das Universidades Federais, com doutorado)
Figura 2: Evolução dos Salários do Magistério Superior (Docentes das Universidades Federais, com mestrado)
(i) Durante o governo “FHC II” (1998 e 2003), o valor real dos salários sofreu uma perda generalizada (a todos os segmentos) de quase 20%.
(ii) Durante o “Lula I” (2003-2006), houve uma recuperação, também generalizada, de tais perdas.
(iii) No período 2007-2014, uma reestruturação da carreira ocorrida no “Lula II” fez com que alguns segmentos (sobretudo os mais ao topo, e.g. Titular e Associado) seguissem com aumentos bem acima (22% a 29%) da inflação até o final do “Dilma I”, enquanto os segmentos iniciais (Adjuntos etc.) não obtivessem qualquer aumento além da reposição de perdas inflacionárias (mais ou menos a cada dois anos).
(iv) Ao final do “Dilma I” e início do “Dilma II”, uma nova alteração na estrutura da carreira – acordada entre o Executivo e o Proifes em 2012 e sobretudo em 2015 – fez com que entre 2014 e 2019 os salários dos regime 20h e 40h subissem acima dos de DE, desvirtuando a bandeira histórica de priorização ao regime DE.
(v) A partir do golpe (ainda mais após a implementação da última parcela dos acordos Dilma-Proifes em 2019), os salários passam a perder valor de compra ano após ano. Ao todo, a inflação corroeu os vencimentos totais de todos os segmentos da categoria em 35% desde o último acordo (Dilma) em 2015 (31% desde a última parcela de seu reajuste, em 2017; ou 27% apenas durante o governo Bolsonaro).
A tabela 1 mostra as perdas e ganhos de cada período acima mencionados.
5. Nosso sindicato, mantendo sua independência e autonomia, deve reconhecer que o período Lula-Dilma caracterizou-se por conquistas, avanços e retrocessos à categoria docente. Visões simplistas e dogmáticas – tanto as marcadas pelo sectarismo negacionista (que orientou companheiros da diretoria do Andes por vários anos), quanto as balizadas pelo ufanismo “chapa branca” (típica do Proifes) – que rejeitem a existência de tais contradições não ajudam o Andes-SN a impulsionar as mobilizações e as lutas futuras por novas conquistas.
Por um lado, é preciso criticar firmemente os (e exigir a reversão dos) reveses na estrutura da carreira (a distorção na proporcionalidade DE-40hs-20hs, que veremos adiante em mais detalhes) bem como a retirada de direitos previdenciários dos SPFs (e da categoria docente) imposta pela malfadada Reforma de 2003 (EC-41, que acabou com a paridade e a integralidade, abrindo as portas à previdência privada aos SPFs). Por outro lado, é indispensável lembrar que os acordos de reposição inflacionária aos SPFs no período Lula-Dilma (ainda que não ideais) foram melhores do que os de quaisquer outros governos anteriores – desde a ditadura – ou posteriores. E que tudo isso ocorreu no contexto da expansão das Universidades e Institutos Federais (Reuni etc), que permitiu mais do que dobrar o número de docentes no ensino superior; uma inquestionável conquista da categoria docente e do povo brasileiro, a despeito de críticas pontuais que possamos (e devamos) levantar. É preciso resgatar tais conquistas, defende-las dos ataques vindos do golpismo e da “direita tradicional”, e lutar para sua ampliação futura.
Estrutura da Carreira Docente e a defesa da Universidade Pública
6. Como visto acima, para além das perdas e reposições inflacionárias, as carreiras do MS e EBTT passaram por reestruturações ao longo das décadas desde a redemocratização do país nos anos 1980. A luta da categoria ao longo dessas décadas tem sido a da estruturação de uma carreira condizente com a construção de uma Universidade pública, gratuita, autônoma, de qualidade e que prime pela indissociabilidade das atividades de ensino, pesquisa e extensão. Essa luta do Andes (junto com outras entidades sindicais e da Educação) garantiu inclusive que bandeiras do movimento (regime jurídico único, isonomia na carreira com salário integral; estabilidade; concurso público, paridade na aposentadoria e a preferência ao regime de DE) fossem incorporadas na própria Constituição (CF) de 1988.
Justamente por ser a base estruturante tanto da profissão docente como de tal Universidade, a luta pela priorização do regime Dedicação Exclusiva (DE) teve importância central em tal batalha histórica do movimento docente desde o final da ditadura militar. Por isso, nos anos 1980, a Andes batalhava pela valorização da remuneração do DE vis-à-vis os demais regimes de trabalho.
O que permitiu à categoria arrancar (após uma greve vitoriosa) o Plano Único de Classificação e Retribuição de Cargos e Empregos (PUCRCE), implantado pelo Decreto nº 94.664/1987, que estipulava uma proporção dentre as remunerações de cada regime de trabalho: fixou-se que a remuneração de DE é 1,5 vezes maior que a do de 40h e 3,1 vezes maior que a do regime de 20h para o mesmo nível e titulação (DE=1,5x40h; DE=3,1x20h).
7. Mal a CF-88 foi promulgada, tais conquistas já começam a ser sabotadas, particularmente no que se refere à negligência frente à priorização do regime de trabalho de dedicação exclusiva (DE) – incluindo várias tentativas de distorcer a proporção da PUCRCE. Os governos Sarney, Collor e sobretudo FHC não tardaram em tentar burlar alguns de tais parâmetros. Novas normas – como por exemplo as da Lei 9.678/98 – foram criando Gratificações de produtividade: de Estímulo à Docência (GED) ou de Atividade Executiva (GAE) etc. Elas passaram a abrir precedentes para a distorção da proporção da PUCRCE no salário total. Assim, embora a relação entre os Vencimentos Básicos dos regimes mantivesse a proporcionalidade (DE/40h = 1,5; DE/20h = 3,1), o salário total apenas manteria tal proporção a depender de condicionalidades (como por exemplo atingir metas de produtividade – tão à moda do quantitativismo/competitivismo neoliberal que passou a impor crescentes pressões de trabalho sobre o professor/pesquisador). Ademais, tais gratificações ameaçavam gerar instabilidade na renda de longo prazo do docente no caso de não serem automaticamente incorporadas ao salário em si.
8. Em 2008, o governo Lula cria uma nova estrutura de carreira com a Lei 11.784 aos docentes federais. Foi garantido o princípio da PUCRCE e da CF de proporcionalidade nos rendimentos básicos entre regimes. Além de priorizar a DE, a lei criou também nova estrutura de carreira, tanto ao magistério superior (MS) quanto ao do ensino básico, técnico e tecnológico (EBTT). No caso do MS, o cargo de Professor Titular (cuja obtenção encontrava-se fora da carreira – exigindo ao docente novo concurso) foi incorporado à carreira docente, uma conquista. Uma nova classe, a de Professor Associado, foi também criada. Os acordos nos governos Lula-Dilma foram também substituindo as gratificações por Retribuições por Titulação (fixas).
9. Em 2013, contudo, a partir de um acordo proposto pelo Proifes – entidade divisionista que havia anos antes rompido com o Andes-SN e se comportado como uma espécie de sindicato “chapa-branca” – levou ao início de um revés na estrutura da carreira, que foi aprofundada num segundo acordo em 2015. Tal reestruturação distorceu a proporcionalidade da PUCRCE sobretudo no Vencimento Básico, mas também no salário total. E o fez em detrimento da priorização da DE, princípio da defesa do compromisso com a Universidade pública de qualidade. Um revés que precisa ser agora revertido.
10. Para ilustrar tal processo como um todo, as figuras 3 e 4 abaixo mostram a evolução no decorrer das décadas das proporções do Vencimento Básico (VB) entre os regimes de DE, 40h e 20h. E as figuras 5 e 6 mostram a evolução das proporções do Salário Total (ST) – que inclui, além do VB, as gratificações – até 2008/10 – e as Retribuições por Titulação – de 2010 em diante.
Figuras 3 e 4: Evolução das proporções de VB DE/40h e DE/20h.
Figuras 3 e 4: Evolução das proporções de Salário Total DE/40h e DE/20h
Nota-se (Fig 3 e 4) que até 2012 a proporção do VB entre regimes de trabalho respeitou, a rigor, a regra da PUCRCE. O VB do DE foi em geral 1,55 vezes o do 40hs e 3,1 vezes o do DE (a fugaz exceção – não muito significativa – diz respeito a alteração na carreira entre 2007/2008, incluindo a mudança de nomenclaturas (adjuntos, associados). No mesmo período (Fig 4 e 5), a proporção do valor do Salário Total manteve-se fiel ao PUCRCE até 2007 (apenas no caso do docente receber todas as gratificações por proporcionalidade, lembremos): sendo o do DE em torno de 1,55 vezes o do 40h e 3,3 vezes o do 20h. Com a nova carreira a partir de 2008, o ST do DE eleva-se mais do que o do de 40h (bem mais no caso das classes superiores – Titular e Associado). Mas em relação ao de 20h, há uma divisão entre as classes: o ST da DE das classes do início de carreira (adjuntos) passa a ser um pouco menos do que 3 vezes o das de 20h; e o das classes superiores passam a ser cerca de 3,6 vezes a de 20h. Ainda que com certa desvantagem ao início da carreira, pode-se dizer que, grosso modo, o princípio do PUCRCE foi mantido e até reforçado no período 2008-2012.
Mas após os acordos Proifes de 2012 e 2015 (implementados em parcelas em geral anuais em agosto de dos anos seguintes, até 2019), tal princípio foi deturpado em detrimento da primazia do regime de DE e em favor do regime de 20h. Após um rearranjo inicial entre 2013 e 2018 (visualmente confuso nos gráficos), o VB do DE passa a ser a todos os segmentos (até hoje) quase 1,45 vezes o do 40h e apenas 2 vezes o do 20h. E o Salário Total do DE é 1,65 vezes o do 40h e 2,75 vezes o do 20h.
Abertura de negociações com o novo governo Lula
11. A vitória eleitoral de Lula sobre Bolsonaro, apoiada entusiasticamente por centenas de milhares de docentes e oficialmente referendada por seu sindicato nacional, o Andes-SN, representa um enorme passo na retomada da luta em defesa dos serviços públicos em geral e da Universidade Pública e autônoma em particular. E neste contexto, ela permite reabrir um canal de negociações com o governo federal.
Sabemos que as classes dominantes, a mídia corporativa e o grande capital financeiro (bem como o poderoso lobby do ensino privado), junto com a maioria reacionária e golpista do Congresso e demais instituições farão enorme pressão contra os gastos sociais e os direitos dos trabalhadores e dos servidores. Tentam manter as absurdas limitações de gastos sociais (LRF, Teto de Gastos e/ou outros substitutos) e um orçamento diminuto com uma arrecadação regressiva. Mas eles que foram derrotados nas urnas (pois preferiam a terceira via ou mesmo a continuidade da política de Guedes), podem e devem ser derrotados nas ruas – abrindo caminho à luta por reforma tributária progressiva, fim das limitações de investimentos sociais etc. O que pode permitir ao governo atender às demandas populares cuja defesa foi o que garantiu sua eleição para recuperar e transformar o país.
12. Nesse sentido, o Andes-SN deve mobilizar a categoria docente e a comunidade universitária em todo o país para, junto com os demais movimentos sociais e sindicais (em particular os ligados à Educação, à C&T e aos SPFs), garantir suplementação de verbas suficiente nos próximos dois ou três anos para retomar a expansão das Universidades e Institutos Federais e corrigir as perdas impostas à carreira e aos salários dos docentes federais. E nesse movimento, é possível – desde já – abrir a negociação com o governo (o MEC, o ministério de Gestão etc) de modo a estabelecer um calendário rumo à: recuperação das perdas inflacionárias dos salários dos SPFs desde o último reajuste (algo acima de 30%); correção das proporções entre salários dos regimes de trabalho de modo a garantir (que tanto o Vencimento Básico quanto o Salário Total) a proporção histórica do PUCRCE (o que implicará em aumentos escalonados ao regime DE superior aos dos demais); e reverter as perdas da reforma previdenciária de 2019.