Medida Provisória 520 ameaça caráter público dos HUs

* Diretoria da Adunifesp-SSind. 2009-2011

O dia 31 de dezembro de 2010, último dia do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi marcado por um grave ataque à autonomia das universidades federais e à consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). No apagar das luzes de um governo de oito anos, foi assinada uma Medida Provisória – a MP 520 – que cria uma empresa pública com gestão de “mercado”, mais precisamente no formato de uma Sociedade Anônima, para administrar os Hospitais Universitários (HUs) vinculados às Instituições Federais de Educação Superior (IFES).

Como desdobramento continuísta, um decreto da presidente Dilma Rousseff deve criar oficialmente a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares S.A. – EBSH – e, em seguida, o Congresso Nacional deve votar a transformação da MP em lei. Para os primeiros 180 dias após a constituição da referida empresa, já está prevista a contratação de mais de sete mil funcionários. Para os próximos anos, a proposta é substituir os quase 25 mil profissionais contratados de maneira precária e irregularmente pelas fundações de apoio e pelas universidades.

É importante frisar, porém, que com a EBSH S.A. os trabalhadores continuarão sendo contratados de forma precária, via CLT e não através do Regime Jurídico Único, importante conquista dos servidores públicos. Além disso, um processo seletivo simplificado deve substituir o concurso público. Portanto, a MP, ao invés de apresentar uma solução para a perversa situação atual, apenas irá “regularizá-la”.

O que quer o Governo?

A criação da nova empresa através de uma MP demonstrou um claro episódio de “abuso de poder” do Executivo. O prévio debate com a sociedade e no parlamento foi ignorado, o que é especialmente grave tratando-se de um tema tão polêmico como a terceirização da gestão de quase 50 Hospitais Universitários, parte importante do SUS. O modelo proposto segue o receituário já aplicado principalmente no Estado de São Paulo. O resultado é conhecido: falta de transparência e controle social da gestão, prioridade para a quantidade e não para a qualidade do atendimento, quebra do princípio da universalidade do sistema e ataques aos direitos dos trabalhadores em saúde. Um enorme retrocesso no serviço público de saúde prestado pelos HUs.

A iniciativa, além de ser um enorme revés à consolidação do SUS, ainda preocupa por representar uma ameaça ao princípio constitucional da autonomia universitária. É gravíssimo que a nova empresa atue dentro das IFES subordinando ensino, pesquisa e extensão a uma gestão privada e com interesses de “mercado”. Além disso, a medida abre a clara possibilidade de ingerência do Ministério da Educação na administração de pessoal próprio das IFES, como os servidores dos HUs.

A MP 520 atende a dois interesses principais do governo. Em primeiro lugar, tenta cumprir as exigências de órgãos de controle público, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério Público, que cobram a regularização de problemas nos HUs, em particular as contratações “precárias”. Em segundo, busca-se a terceirização e a implantação de um modelo privado de gestão, proposta originária de governos do PSDB em São Paulo, mas que ganha cada vez mais força no Governo Federal.

Quanto ao primeiro ponto, a MP tenta burlar acordos entre o governo e os órgãos de controle, já que a medida não propõe acabar com a mão-de-obra precarizada ou terceirizada nos HUs, apenas buscando regularizar a situação através de uma “canetada” presidencial. As irregularidades cometidas nos últimos anos nos Hospitais-Escola das IFES, ao invés de serem corrigidas, seriam apenas maquiadas. A questão aí é mais grave, já que o governo do ex-presidente teve oito anos para solucionar grande parte da situação contratual irregular dos quase 26 mil servidores dos HUs e não o fez. Por que não foram realizados concursos públicos nesse período criando-se, eventualmente, uma carreira transitória? Fica a pergunta.

Hospital Universitário S.A.?

Segundo a MP, a nova empresa será pública e vinculada ao Ministério da Educação. Entretanto, funcionará como uma Sociedade Anônima (S.A.) – regida pela Lei 6.404 de 1976 –, um modelo administrativo que visa lucro, através da abertura de seu capital ao mercado de ações. Tal modelo, além de não cumprir diversos princípios da saúde pública e do SUS, ainda encarece a gestão dos Hospitais.

Como o regime jurídico da EBSH será de uma S.A., em relação aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários, ela não irá gozar de imunidade tributária e seus custos acabarão onerados em cerca de 30%. O Grupo Hospitalar Conceição, de Porto Alegre e também ligado ao Governo Federal, é um exemplo de instituição que, por conta dos altos custos de gestão, tenta mudar sua situação de S.A. para Fundação Estatal.

Outro problema é que os HUs não poderão reivindicar o procedimento da penhora especial, ficando seus bens públicos sujeitos à penhora como qualquer empresa privada. Não podemos esquecer que a maioria desses Hospitais está bastante endividada e que a dívida total atinge a soma de 750 milhões de reais, sendo que apenas o Hospital São Paulo, da Unifesp, tem uma dívida de cerca de 250 milhões. A EBSH irá assumir tais dívidas?

Terceirização e privatização

É importante lembrar que a MP 520 cairia “como uma luva” para alguns Reitores e Fundações ditas “de apoio” que fizeram muitas contratações irregulares, já que tal situação seria legalizada. Com o modelo de S.A. também terão mais liberdade para captar recursos na iniciativa privada, sem precisar apelar para subterfúgios questionáveis. Além disso, poderão montar uma administração mais enxuta aos moldes da privada, estabelecendo metas produtivistas e tratando a saúde da população como mais uma mercadoria. Implantar o modelo de S.A. nos HUs representará uma brutal abertura do sistema público de saúde para a iniciativa privada.

O processo de terceirização da saúde pública vem sendo contestado na Justiça como uma afronta aos princípios do SUS e da Constituição Federal, o que também coloca em cheque a MP 520 e da EBSH. Um dos principais problemas jurídicos atuais, de servidores estatutários e celetistas exercerem as mesmas funções, com direitos diferentes, continuará existindo com a MP e o Supremo Tribunal Federal (STF) já negou a possibilidade de isto acontecer, não podendo haver contratações de celetistas na administração direta, nas autarquias ou fundações públicas.

A MP define que as IFES irão decidir se o seu HU será ou não administrado pela EBSH, mediante um termo de adesão. Entretanto, dada a forma antidemocrática pela qual o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, secundado de forma subserviente pelo Ministério da Educação, impõe seus interesses, é difícil imaginar que a maioria das federais escolha outra opção. Desta forma, um ente estranho às IFES irá contratar profissionais via CLT, para a realização de uma atividade fim na saúde e na educação. Além disso, a administração se dará por meio de um contrato de gestão, com metas a serem cumpridas (art. 4º., inciso V da MP), modelo que tem causado sérios problemas à saúde dos trabalhadores da área, especialmente distúrbios mentais e psicossomáticos.

Certezas preocupantes e muitas dúvidas

Porém, mesmo com todas estas certezas preocupantes, a MP também é omissa em relação a várias questões importantes. O que aconteceria, por exemplo, com o atual convênio entre o SUS e os HUs? Seria ratificado pela EBSH? Se ela for uma gerenciadora de hospitais parece surgir uma triangulação de contratos e convênios. E as dúvidas não param por aí: que papel ficará reservado para as fundações de apoio ligadas aos Hospitais-Escola? Como se dará a transição dos modelos? Se a MP cria uma empresa pública de personalidade jurídica privada, como se dará o Controle Social, um dos pilares da legislação do SUS?

O movimento social de defesa da saúde e educação públicas organiza-se desde janeiro com o objetivo de derrubar a MP e a conseqüente terceirização da gestão de pessoal dos HUs. Entidades como o ANDES-SN e a FASUBRA encabeçam os protestos, que prometem crescer nos próximos meses. A rejeição à iniciativa, porém, é bem mais ampla. O Conselho Nacional de Saúde, na sua reunião ordinária de janeiro de 2011, repudiou a MP através de uma moção e defendeu sua retirada da pauta do Legislativo. Além disso, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Ophir Cavalcante Junior, orientou a entidade a participar dos debates sobre o tema e acionou a Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB, para que analise a MP 520.

Até mesmo a ANDIFES, a Associação Nacional dos Dirigentes das IFES, mostrou-se dividida em sua última reunião. Muitos reitores defenderam mudanças na MP 520, particularmente no que tange às ameaças à autonomia universitária, conforme nota divulgada pela entidade. Alguns se declararam inclusive publicamente contrários ao teor da iniciativa, como o Reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Aloísio Teixeira, e da Universidade Federal de São João Del Rey, Helvécio Reys.

Os opositores da MP 520 estudam a situação jurídica por ela criada e, se a mesma for aprovada na forma de lei, devem questioná-la no STF através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). Em relação ao enfrentamento político, protestos contrários à medida foram realizados em quase todas as IFES durante o mês de fevereiro por entidades representativas de docentes, técnicos e estudantes, e uma marcha foi realizada em Brasília no final do mesmo mês. Ademais, a possibilidade de agravamento da situação é grande, podendo inclusive gerar a realização de uma greve proximamente, conforme acena, por exemplo, a FASUBRA.