Maternidade e Ciência em Tempos de Pandemia: Casa, Comida e Artigo Publicado

Artigo escrito por Fernanda Quaglio1, Priscila Fernanda Gonçalves Cardoso2, Regina Helena da Silva3, Clélia Rejane Antonio Bertoncini4 . Ponto de partida para a conversa de amanhã, dia 21/05 às 14h. Assista ao vivo: https://www.youtube.com/watch?v=XRSAwwc3eko

A pandemia mudou a forma de fazer e publicar ciência. A necessidade de tratamento, cura, ou mesmo o entendimento da doença fez com que as revistas científicas publicassem artigos no dia seguinte ou mesmo no dia da submissão do manuscrito. Esse senso de urgência se estende para além da pesquisa diretamente relacionada à COVID-19, e mudou de forma geral o modo como os/as cientistas trabalham. Deixando a qualidade dos trabalhos de lado, pensemos então como esta corrida armamentista da ciência acontece mundo afora. Foco e tempo de dedicação devem ser maximizados para aumentar a velocidade de experimentos/estudos e resultados, e os artigos decorrentes deles são a métrica que atesta qualidade a um/a cientista. No Brasil, por exemplo, em um momento de quarentena, muitos viram a oportunidade de “colocar em dia” a escrita de artigos, em vista do afastamento de outras atividades que compõem o dia-a-dia dos/as professores/as universitários/as (os/as principais geradores/as de conhecimento no país).

Casas com crianças isoladas há meses certamente não protagonizarão a rápida materialização de artigos de grande impacto, a não ser que alguém esteja cuidando dessas crianças e de todo o trabalho dobrado na organização da casa que delas resulte. As tarefas não acompanham em progressão aritmética o aumento do número de integrantes em uma casa. As roupas, a sujeira, a comida, o cumprimento com horários – tudo se amplifica e torna os afazeres tão complexos quanto só quem tem filhos sabe dimensionar. Pelo mundo virtual pipocam informações, textos, lives, opiniões e desabafos de cientistas mulheres sobrecarregadas com os cuidados da casa e dos filhos (Candido & Campos 2020, Minello et al. 2020, Staniskuaski et al. 2020, além de inúmeras lives nas mídias sociais). Independentemente do número de adultos que lá moram, a maior parte das responsabilidades da casa e das crianças recai sobre as mulheres. Não obstante, tal exigência se adiciona às demandas das instituições que querem manter a normalidade do trabalho em meio à pandemia a todo custo. Soma-se a isso o agravamento das demandas por suporte psicológico/psiquiátrico deflagrado durante episódios de epidemias e pandemias (Yadav & Rawal 2015, Ornell et al. 2020).

Sites de divulgação sobre ciência para o público em geral têm reportado diferenças na quantidade de submissões de trabalhos entre homens e mulheres após o início da quarentena. Enquanto as mulheres ocupam suas mentes e força de trabalho com o banho, o almoço e a criação de atividades para as crianças presas em casa, o blog The Lilly, publicado pelo The Washington Post, menciona o aumento de 50% nas submissões de artigos científicos por homens cientistas durante a quarenta (Kitchener 2020). “Me parece que os trabalhos pré-impressão são predominantemente de homens nas últimas semanas. O mesmo para a submissão de artigos que eu tenho acompanhado como editora. Alguém observou isso para astrofísica?”, tuitou uma editora norte-americana. “Número ínfimo de submissões ao jornal por mulheres no último mês. Nunca vi nada igual.”, afirma no tuíter outra editora de revista científica, desta vez, britânica. Em artigo na revista Nature, Minello (2020) chama a atenção para o fato de que homens e mulheres estão tendo que reorganizar as tarefas do dia-dia, e isso afetará o desempenho em suas carreiras profissionais. “O trabalho acadêmico é basicamente incompatível com o trabalho de cuidar de crianças”, assegura a autora, e afirma ainda esperar por futuros estudos demonstrando a diferença de produtividade entre pessoas com e sem filhos. Embora dê exemplo no qual a mãe, da área médica, segue trabalhando fora e o pai permanece em casa cuidando da casa e dos filhos, observa que na maior parte da população, o trabalho excedente recai sobre a mulher. Nos Estados Unidos, as mães gastam o dobro do tempo no cuidado dos/as filhos/as do que os pais. E conclui: “A única solução real é a de sempre: investimento em longo prazo na equidade de gêneros”.

Esta é uma realidade já conhecida por mulheres-mães-cientistas em seu cotidiano, que muitas vezes abrem mão de participar de eventos científicos e trabalhos de campo, produzem menos (mas não com menor qualidade), adoecem e se sobrecarregam para manter todas as suas atribuições como docentes e cientistas. Em 2017, pesquisa realizada com mais de 1.100 cientistas no Brasil pela Parent in Science mostra que a queda na produtividade e nos financiamentos de pesquisa é uma realidade após a maternidade. Das pesquisadas, 81% afirmam que a maternidade teve impacto negativo ou muito negativo em sua carreira. “Enquanto as cientistas sem filhos têm uma curva ascendente em sua produção científica, as que se tornam mães têm uma queda drástica nas publicações até o quarto ano do nascimento do primeiro filho, para só depois começar a ascender novamente”, revela a pesquisa coordenada pela pós-doutora e bióloga Fernanda Staniscuaski (Boueri & Assis 2018).

Nas agências de fomento no Brasil, a diferença de gênero está presente em grupos de assessores e de diretores científico com poder decisório para a concessão de bolsas ou auxílios. Em contraste, os relatórios de prestação de contas e produtividade são cobrados como se a maternidade não tomasse tempo algum. “A vida não cabe no currículo Lattes”, pode-se ler em muros da cidade de São Paulo. A vida se materializa com o cumprimento dos passos, como a gestação, o parto, a amamentação, além dos inúmeros cuidados que um/a filho/a em vários momentos só aceita se oferecidos pela mãe. Se por “falta de opção”, uma mulher se vê na situação de criar filho/a sozinha, ser também cientista torna-se desafio difícil de cumprir. E, se o/a filho/a é portador de uma doença crônica e grave, como autismo, epilepsia ou síndrome de Down, além dos profissionais da medicina e da psicologia, até os melhores amigos desta sorte de mãe a aconselharão a cuidar primeiro da sua cria, e depois da produção científica. No entanto, caso ela ouse avançar em sua vocação para a ciência, os mesmos conselheiros virão a lhe impor regras e lhe cobrarão com igual rigor a apresentação de resultados.

E esta realidade ainda não cabe no curriculum lattes. Após uma grande campanha encabeçada por cientistas brasileiras (iniciada pelo grupo Parent in Science com adesão de vários coletivos, tais como GT Mulher e Ciência UnifespObservatório Cajuína, dentre outros), o CNPq anunciou (CNPq 2019) que faria a inclusão de um campo específico para registro de data de nascimento ou adoção de filhos/as no lattes (para mães e pais). Isto representaria um passo rumo a visibilidade do período de licença maternidade, marcado pela queda da produtividade das mulheres, em nome de uma outra produção muito valiosa. Além disso, explicitaria a condição de mulher-mãe-cientista, que traz desdobramentos para a construção da carreira docente e de pesquisadora, que, na maioria das vezes não é levada em consideração por avaliadores e pelas agências de fomento. No dia das mães de 2019, o CNPq fez postagem em seu instagran oficial parabenizando as mães e (re)anunciando a criação da aba para inserção desta informação. No entanto, passado mais de um ano, este campo ainda não existe na plataforma lattes. Como um importante posicionamento político, muitas mulheres incluem a informação sobre sua maternidade no resumo inicial de seu curriculum lattes.A indicação no lattes chama atenção para o tema, mas isoladamente pode funcionar como um estigma e acentuar ainda mais o desequilíbrio de gênero. Por este motivo, além da simples indicação no lattes, urgem políticas institucionais de valorização da maternidade. Por exemplo, excluir um tempo além da licença-maternidade nos períodos de análise para pedidos de financiamento.

A pandemia descortina e agudiza a já marcada divisão de gênero, com a sobrecarga das mulheres no que se refere ao trabalho doméstico e aos cuidados com as crias. Especialmente neste período, esta sobrecarga traz impactos também agudizados para as atividades docentes e/ou de produção intelectual, os quais estiveram até então invisíveis nos pareceres e comissões de avaliação. Em um ou dois anos, os currículos refletirão esse acentuado desequilíbrio nas listas de publicações. As instituições levarão isso em conta para decidir quem receberá o financiamento, a promoção, o cargo de chefia ou a premiação? Seguiremos desvalorizando mulheres cientistas por escolherem também a maternidade? A pandemia será capaz de nos ensinar enquanto humanidade questões de equidade, direitos e solidariedade? Enquanto não houver ações afirmativas de valorização da coexistência entre maternidade e ciência, as mães cientistas do Brasil e do mundo pós-pandemia seguirão em sua busca quase inalcançável pela paridade de produtividade com os homens.

1 Professora Adjunta, Laboratório Unifesp de Paleontologia de Invertebrados, Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva, Universidade Federal de São Paulo, campus Diadema

2 Professora Associada do Curso de Serviço Social e do Programa de pós-graduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Universidade Federal de São Paulo, campus Baixada Santista.

3 Professora Associada do Departamento de Farmacologia, EPM; Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Farmacologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, campus São Paulo.

4 Professora Associada do Centro de Desenvolvimento e Modelos Experimentais para Medicina e Biologia e orientadora do Programa de Pós-Graduação em Ginecologia, Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo, campus São Paulo.


Referências

Boueri, A.G.;  de Assis, C. Sem considerar maternidade, ciência brasileira ainda penaliza mulheres. Gênero e Número [publicado em 20 de março de 2018]. Disponível em: http://www.generonumero.media/sem-considerar-maternidade-ciencia-brasileira-ainda-penaliza-mulheres/

Candido, M. R.; Campos, L.A. Pandemia reduz submissões de artigos acadêmicos assinados por mulheres, Blog DADOS, 2020 [publicado em 14 de maio de 2020]. Disponível em: http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/

CNPq. CNPq inclui data de nascimento ou adoção de filhos no Currículo Lattes. [publicado em 26 de março de 2019]. Disponível em: http://www.cnpq.br/web/guest/noticiasviews/-/journal_content/56_INSTANCE_a6MO/10157/7197016

Kitchener, C. Women academics seem to be submitting fewer papers during coronavirus. ‘Never seen anything like it,’ says one editor. The Lily [publicado em 24 de abril de 2020]. Disponível em: https://www.thelily.com/women-academics-seem-to-be-submitting-fewer-papers-during-coronavirus-never-seen-anything-like-it-says-one-editor/

Minello, A. 2020. The pandemic and the female academic. Nature, doi: 10.1038/d41586-020-01135-9

Ornell F, Schuch JB, Sordi AO, Kessler FHP. “Pandemic fear” and COVID-19: mental health burden and strategies. Braz J Psychiatry. 2020;00:000-000. http://dx.doi.org/10.1590/1516-4446-2020-0008

Staniscuaski, F.; Reichert, F.; Werneck F. P.; Oliveira, L.; Mello-Carpes, P.; Soletti, R.C.; Almeida, C. I.;  Zandona, E.; Ricachenevsky, F.K.; Neumann, A.; Schwartz, I. V. D.; Tamajusuku, A.S.K.; Seixas, A; Kmetzsch, Livia. Impact of COVID-19 on academic mothers. Science: 368 (6492): 724,2020, doi: 10.1126/science.abc2740

Yadav, S; Rawal, G. The Current Mental Health Status of Ebola Survivors in Western Africa. J Clin Diagn Res. 2015; 9(10):LA01‐LA2. doi:10.7860/JCDR/2015/15127.6559