Estado e mercado em tempos de crise aguda

por Marcelo de Carvalho, Chefe do Departamento de Economia da Escola Paulista de Política, Economia e Negócios da Universidade Federal de São Paulo.

Por uma série de motivos distintos, a orientação liberal no campo da Economia tornou-se cada vez mais presente a partir de meados da década de 1970. Desde então, esta orientação tem se traduzido na base da política econômica da grande maioria dos governos nacionais do planeta. Antes, porém, de fazer comentários a respeito do assunto na atualidade, valeria a pena dizer algo a respeito do próprio significado e da origem do liberalismo econômico.

Como premissa central desse tão conhecido dentre os vários “ismos” das Ciências Humanas, temos a ideia de que a concorrência de todos contra todos, tendo em vista o interesse material e egoísta de cada indivíduo, traria ao conjunto da sociedade o máximo de bem-estar. Assim, a concorrência livre entre várias empresas traria como resultado produtos mais baratos e de melhor qualidade; a concorrência entre trabalhadoras(es) por postos de trabalho faria com que oferecessem seu melhor desempenho, tornando os processos produtivos mais eficientes e baratos. Em meio a esse processo concorrencial generalizado, cada um (trabalhador ou empresa) seria empurrado para aquela função ou setor de atividade em que fosse mais eficiente / competitivo – sob pena de ser deslocado por concorrentes mais competentes. E, querendo ganhar e consumir sempre mais, a tendência natural seria conduzir a economia ao uso produtivo de todos os recursos disponíveis – inclusive e, principalmente, o trabalho humano –, resultando no que os economistas costumam chamar de “pleno emprego”. Em suma, por mais paradoxal que pudesse parecer, os indivíduos egoístas acabariam produzindo, em escala social, o melhor resultado possível para a coletividade: todos sairiam ganhando com a mais eficiente alocação de recursos, produzida apenas com as forças de mercado. Cabe notar: dentre as peças desse arranjo virtuoso, haveria pouco espaço para aquilo que fosse estranho ao jogo de ofertantes e demandantes; elementos estranhos à lógica do próprio mercado nada teriam a contribuir para com ele. Daí a conclusão de que o Estado e, de modo mais geral, a própria Política deveriam deixar o caminho livre para que o mercado pudesse conduzir a sociedade ao melhor dos mundos: eis aí o cerne da proposta liberal para organizar a vida material em sociedade.

Embora essa visão aqui brevemente descrita esteja, de fato, na origem da própria Ciência Econômica (no Século XVIII), é também bastante verdadeiro que esta forma de pensar viu-se questionada desde muito cedo entre os autores da área. Ainda no Século XIX surgiram observações sobre os efeitos cumulativos do enfrentamento concorrencial: a constituição de grandes grupos monopolistas (ou quase monopolistas) parecia não combinar com a descrição teórica de uma economia de concorrência livre e generalizada – exatamente a premissa do liberalismo. Por outro lado, crises mostravam que o sistema de livre mercado frequentemente deixava de entregar às sociedades o desejado uso pleno de recursos produtivos, resultando em desemprego e em níveis inéditos de pobreza. De fato, o mesmo progresso técnico que permitia às empresas produzir maiores quantidades de produtos (e mesmo de novos bens) também podia significar a substituição de mão de obra humana por máquinas.

Apesar desses senões, foi apenas após as primeiras décadas do Século XX que o liberalismo econômico sofreu mais pesado questionamento. Até então, as crises econômicas eram vistas como restritas a certos setores ou regiões; além de limitadas em extensão, seriam até mesmo descritas como benignas para a sociedade, justamente por fazer com que, através da concorrência, sobrevivessem apenas os competidores mais fortes. De outra parte, os eventos de mau desempenho dos mercados eram frequentemente creditados à intervenção do Estado no domínio econômico. Porém, a crise de 1929 significou uma forte ruptura com esta visão, tanto porque os fatores determinantes dessa crise vinham de dentro do próprio mercado (no seu segmento financeiro) quanto porque a extensão e profundidade da crise foram (e ainda são) sem precedentes. A tragédia social que daí resultou teve escala planetária; taxas de desemprego chegaram a cerca de 25% (ou seja: 1 a cada 4 pessoas sem fonte de renda do trabalho!) mesmo na maior e mais moderna economia nacional de então, os EUA.

Como resultado, várias medidas foram propostas para amenizar, equacionar e, mais tarde, prevenir a crise. Alguns governos nacionais buscaram fazer programas de obras públicas para gerar postos de trabalho (sendo esta uma das iniciativas do New Deal, nos EUA); outros usaram seu poder de gasto para manter o fluxo das atividades econômicas mais importantes (como no caso da compra de café pelo governo brasileiro da época); e, é claro, surgiram novas teorias econômicas que reconheciam o papel do Estado como regulador, garantidor e promotor da ordem econômica… de mercado. Com efeito, os estados nacionais acabaram por assumir (ainda que em diferentes graus, em cada experiência nacional específica) uma série de atribuições que até então não tinham, como o controle das atividades financeiras, a organização de sistemas públicos de saúde, previdência e assistência social, e mesmo a promoção do desenvolvimento econômico em bases nacionais – sobretudo após a II Guerra Mundial. Reconhecia-se o fato de que, justamente por não agir pautado pelo objetivo do lucro ou com foco individualista, somente o Estado poderia, com seus instrumentos também distintos daqueles das finanças privadas, prover o mercado de salvaguardas que nenhum agente individual ou organização privada poderia oferecer. Por outro lado, a representação popular faria com que esse Estado se pautasse por objetivos socialmente definidos para sua ação – desde que, é claro, houvesse ambiente democrático.

É natural, portanto, que voltemos a nos perguntar sobre os papeis de Estado e mercado por ocasião das mais recentes crises – a de 2008 e a de agora, provocada por uma pandemia global. No desfecho da crise de 12 anos atrás, o Estado foi chamado a socorrer o mercado que, mais uma vez, mergulhava em uma crise de alcance planetário provocada por circunstâncias internas ao setor financeiro1. Neste momento, uma crise de extrema gravidade leva os mercados a nova situação de pânico e desarticulação – ainda que a causa primária dessa crise fuja ao campo puramente econômico. No entanto, nota-se que o Estado se apresenta, uma vez mais, como o agente capaz de oferecer aquilo que o mercado, por suas próprias forças, não pode prover; no caso atual, governos nacionais têm cuidado de submeter a operação dos mercados aos imperativos de saúde pública (por exemplo, ao determinar a paralisação de várias atividades produtivas e de prestação de serviços). Mas, para além desse tipo de ação, buscam também limitar o alcance de certos efeitos da crise sobre o mercado (como no caso dos países que estudam a estatização de certas empresas para evitar sua falência e/ou para garantir a provisão de serviços essenciais à população2).

No Brasil de hoje, a orientação liberal tem sido o guia fundamental das ações do governo federal no campo econômico. As recentes reformas previdenciária e trabalhista cuidaram de retirar de cena muito da regulação e da provisão pública nessas áreas, justamente em nome de “liberar as forças de mercado” para, dessa forma, estimular investimentos privados e crescimento econômico – sem qualquer sucesso, diga-se. A emenda constitucional que criou inédita limitação para os gastos do Estado com a proteção social, bem como as novas propostas de redução da remuneração do trabalho dos servidores públicos também se inserem no mesmo escopo. É fácil perceber que estas iniciativas nos colocam na direção oposta àquela que hoje adotam outros países – ou mesmo àquela que por aqui adotamos, com considerável sucesso, no enfrentamento da crise de 2008. Mais que isso, a crescente informalidade das relações de trabalho e a mais escassa cobertura da população pelos benefícios previdenciários podem tornar mais graves os efeitos da crise sanitária e econômica que já estamos vivenciando3 – especialmente por limitar o alcance de certas políticas de proteção ao trabalho (por exemplo, pelo fato de que ninguém recebe seguro desemprego na informalidade) e, além disso, por levar os trabalhadores informais a seguir trabalhando, mesmo com a ameaça de contaminação, por conta da necessidade de se prover de renda – via mercado. Nesse contexto, mesmo com as medidas recentemente anunciadas pelo governo federal para lidar com a pandemia e a crise4, e não obstante a aprovação pelo Legislativo do estado de calamidade pública5, as dimensões da atual crise têm demandado um volume e abrangência muito maiores da atuação do setor público mundo afora6; em face de nossas já conhecidas mazelas locais (com destaque para a péssima distribuição de renda e patrimônio) e daquelas que vêm sendo provocadas pela atual (falta de) condução da economia nacional7, é imperioso que o Estado brasileiro seja chamado de volta à cena com papel de protagonista8 – sob o risco de não mais existir um país para abrigar qualquer mercado.

1 Recomenda-se, para obter uma boa descrição das raízes dessa crise, o filme “Inside Job” (“Trabalho Interno”). O filme, legendado, se encontra disponível, na íntegra, na internet aberta.

2 Aqui merecem destaque as experiências dos países europeus mais duramente afetados pela pandemia:

https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/03/17/franca-e-italia-podem-estatizar-empresas-para-evitar-falencias-devido-a-perdas-por-coronavirus.ghtml
https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/03/16/espanha-estatiza-hospitais-privados-para-garantir-atendimento-em-pandemia.htm
https://jornaldocarro.estadao.com.br/carros/por-causa-do-coronavirus-franca-pode-estatizar-renault-e-psa/

3 Para que se possa avaliar a gravidade da crise que ora se desenrola:

https://www.dw.com/pt-br/o-que-%C3%A9-pior-para-a-economia-coronav%C3%ADrus-ou-crise-global-de-2008/a-52812549
https://www.brasildefato.com.br/2020/03/16/previsoes-para-a-economia-seguem-caindo-mas-crise-e-anterior-ao-coronavirus
https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-03/cepal-crise-por-causa-de-covid-19-sera-uma-das-piores-do-mundo
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/-Esta-crise-se-espalhara-e-resultara-em-um-desastre-/7/46606

4 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/17/governo-medidas-crise-coronavirus-covid-19-economia.htm

5 https://congressoemfoco.uol.com.br/legislativo/senado-aprova-estado-de-calamidade-publica/

6 https://www.msn.com/pt-br/dinheiro/economia-e-negocios/coronav%C3%ADrus-o-que-as-grandes-economias-do-mundo-est%C3%A3o-fazendo-para-evitar-fal%C3%AAncias-e-a-falta-de-dinheiro/ar-BB11w4Sg?li=AAggXC1

7 Um triste exemplo disso é a recente iniciativa governamental de restringir o acesso ao programa de transferência de renda às populações vulneráveis: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/governo-corta-bolsa-familia-de-158-mil-familias-em-meio-a-crise-do-coronavirus/

8 https://recontaai.com.br/2020/03/19/belluzzo-nao-deve-haver-limite-para-intervencao-do-estado-porque-nao-ha-limite-para-a-crise/

As opiniões aqui expressas são exclusivamente aquelas do autor.