ESTRUTURAS OLIGÁRQUICAS E ASPIRAÇÕES DEMOCRÁTICAS NO COMPLEXO MUNDO DAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS (Em defesa da paridade)

Rodrigo Medina Zagni
Docente da Universidade Federal de São Paulo
Presidente da ADUNIFESP-SSIND

“Nossas democracias estão amputadas e sequestradas…”
José Saramago

Dou início a essa reflexão recordando a advertência feita pelo escritor José Saramago de que a democracia estaria sendo concebida, pelas sociedades contemporâneas, tal qual uma “Santa d’Altar”, ou seja, não se tem preocupação alguma em defini-la, senão em cultuá-la: trata-se de uma referência e não mais do que isso. Não se duvida de sua existência nem de seus milagrosos poderes, mesmo porque a dúvida, em termos religiosos, é inimiga da fé; e tampouco se critica a Santa, que é só virtudes.

O moderno conceito de democracia, idealizado no decurso dos séculos XVII e XVIII e plasmado pelas revoluções europeias de 1848, principiadas nas mais importantes universidades francesas e propagadas em seguida por toda a Europa, convertido de um conjunto de aspirações e proposituras em dogma, dera lugar a uma espécie de catatonia irreflexiva incapaz de pensar sua perene e inevitável inconclusão nas sociedades de classe.

A igualdade jurídica, pedra angular deste conceito, frente às desigualdades econômicas segue restringindo-se aos códigos sem que exista concretamente no mundo das práticas sociais onde as diferenças são explicadas pela ideologia do “mérito”, cosmovisão que inscreve as forças sociais dominantes e que, em termos primários, toma os fenômenos da pobreza e da miséria como meras escolhas morais.

E se o exercício da cidadania é o exercício da política, tendo a política como objetivo – desde sua matriz aristotélica – a promoção do interesse público, sua consecução é que permite a existência de direitos e, seu pleno gozo, de cidadania; quando restringida a poucos e negada a muitos – âmbito de relações clientelares cerradas aos interesses públicos – inexistem direitos, tomando-lhe o lugar os privilégios de que se valem os segmentos de sociedade mais abastados na divisão do trabalho social. Resulta que numa sociedade de privilégios, e não de direitos, não há cidadania, tampouco cidadãos.

Considero este percurso introdutório necessário, uma vez que a tarefa é a de pensar a democratização da universidade em uma sociedade de privilégios, clientelismos, favoritismos e onde o empreendimento neoliberal vem recobrando força e vigor no processo de desmonte de direitos, radicalizando o assédio de interesses privados sobre os fundos públicos, historicamente sob disputa.

Se “a universidade é uma instituição social que exprime e reflete, de modo historicamente determinado, a sociedade em que está inserida” (DUARTE; RAMPINELLI, 2005, p. 30), nessa tessitura trata-se, a democratização da universidade, não de uma impossibilidade, mas de um processo complexo e lento em função de sua existência em sistemas sociais oligárquicos e onde vigoram estruturas autoritárias de poder. Trata-se do “caráter não igualitário da comunidade universitária”, já identificado por Darcy Ribeiro (1978, p. 231).

Por sua vez, o autoritarismo instalado em suas estruturas mais elementares tende a converter o conhecimento em instrumento de sua permanência, despolitizando seus ambientes por meio da degeneração de suas funções políticas, a saber: do seu comprometimento com interesses coletivos e não particulares.

Nesses termos, a herança histórica proveniente de seu período formativo, entre os séculos XII e XIII no ambiente tardio-medieval centro-europeu, ou seja, o legado de feudais e verticalizadas relações entre mestres e discípulos; passando pela cisão entre vocações políticas antagônicas no séc. XIX: como corte ou república; se soma no Brasil às heranças do escravismo colonial, aos particularismos, clientelismos e favoritismos na produção da perene indistinção entre público e privado – marcando o domínio do público pelo privado -, conformando uma universidade pouco inclinada às mudanças e tendendo a reafirmar o autoritarismo e a obediência, o mandonismo, o patrimonialismo senhorial e as contradições sociais que, diluídas no cotidiano, passam a ser lidas como signos indistintos da normalidade.

Para Marilena Chauí (2001, p. 120), a universidade, expressão da “realidade social das divisões, das diferenças e dos conflitos”, não se assume de tal forma; comumente apresenta-se como democrática e atenta à diversidade, por meio de um léxico eivado de liberalismo político e pouquíssimo capaz de transcender o plano discursivo. “O que é angustiante é a universidade querer sempre esconder isso e deixar que só em momentos específicos – por exemplo, a eleição para reitor e a discussão de um estatuto – tais coisas aflorem”.

Não que as universidades não estejam sob disputa entre aqueles que demandam e lutam por democracia e as oligarquias nela apoderadas e a quem só interessa uma democracia de caráter retórico. Pelo contrário, tendo sido o laboratório no qual fora criado o moderno ideal democrático, a universidade converteu-se em palco de lutas históricas no ambiente europeu de 1848 que deflagrou a “Primavera dos Povos”. Já no recém-parido século XX, sediou na Córdoba de 1918 o movimento pela democratização de suas estruturas (por meio da participação dos estudantes nas instâncias da política universitária e da criação de cátedras livres para os docentes), que rapidamente se alastrou por todo o ambiente latino-americano. Pouco mais de meio século depois, a luta por democracia na América Latina fez com que novos choques, contra estruturas oligárquicas e seus manejadores, movessem parte significativa da comunidade acadêmica contra as ditaduras militares de segurança nacional que varreram o subcontinente perseguindo professores, alunos e funcionários (vítimas costumeiras de detenções, torturas, desaparecimentos forçados e execuções) e chegando, em muitas dessas realidades, a intervir política e até mesmo pela via da ocupação armada (com tropas e tanques) em unidades de ensino.

O processo de redemocratização dessas sociedades deveria passar também pela democratização de suas universidades, onde as bandeiras da participação do alunado e de técnicos-administrativos, em iguais condições que docentes em seus processos decisórios internos, pareciam dar a tônica para o que seria uma revolução universitária que, no decorrer dos processos de abertura política nas distintas realidades latino-americanas, jamais se processou. Isso porque, segundo Gilmar Rodrigues, Valdir Alvim e Waldir José Rampinelli (2005, 17), apesar de ter havido mudanças, elas foram pactadas “por cima”: “Não sem razão, os regimes democráticos encontram-se hoje cada vez mais desacreditados e as eleições universitárias cada vez mais viciadas”.

Ainda assim, a vida universitária seria tal qual dissera José Carlos Mariátegui: corpo onde habitaria o “espírito novo” e revolucionário que, no entanto, digladiar-se-ia com os fantasmas do atraso encarnados em suas monolíticas estruturas de poder.

Como microcosmo da realidade social, na universidade se apresentam os dilemas e contradições sociais que devem mover o trabalho acadêmico a fim de sua superação, por meio da produção de conhecimentos, reproduzindo-se, no processo, todas as contradições sociais no ambiente universitário. O mesmo pode-se dizer quanto aos elementos da superestrutura ideológica, provenientes de ódios diversos de classe e que habitam também seus espaços: as justificativas que tendem a naturalizar a exploração e as desigualdades.

Numa sociedade cindida por abissais contradições, forças sociais dominantes tendem a reivindicar, nas hierarquias universitárias, espaços de poder institucional equivalentes àqueles que detêm na sociedade, a exemplo do que moveu o processo de criação das primeiras universidades brasileiras no séc. XIX, servis aos interesses dos filhos das oligarquias brancas e que reivindicavam uma tradição cultural europeia.

Por isso as liberdades são tão perigosas para aqueles que escalam, como alpinistas acadêmicos, as hierarquias da administração universitária; e por isso aqueles que lutam por um novo ordenamento são perseguidos, sobretudo quando defendem novas formas de gestão que impliquem em desapoderar aqueles que não abnegam do mando político que têm sobre seus pares.

Mas se é a universidade incumbida dessa hercúlea tarefa, o atendimento das demandas daqueles que não têm direitos deve ocorrer, primordialmente, na universidade.

Para isso, a própria democracia burguesa, concebida entre os séculos XVII e XVIII a partir da díade “liberdade / igualdade” não nos serve dados os seus caracteres abstratos e restritivos; é preciso tornar simétricos os processos decisórios e equânimes os colegiados e comissões, implementar formas intensivas de socialização do conhecimento desde sua construção, de gestão participativa e comunitária dos problemas da universidade, da alocação de seus recursos e da concepção de seus destinos, ou mesmo aquilo que Boaventura de Souza Santos (1994) chamou de “anarquia organizada, feita de hierarquias suaves e nunca sobrepostas”.

Em seus processos decisórios, no entanto, sua estrutura atual nega direitos e reafirma privilégios determinando que diretores de unidades universitárias e reitores sejam escolhidos entre professores, conforme determina a Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), na proporção de 70%; tendo poder reduzido na definição dos rumos da universidade aqueles que são considerados, segundo o mantra há muito entoado, “transitórios”, incapazes de contemplar o tempo da longa duração por estarem acorrentados aos seus interesses imediatistas. Como se a categoria docente não tivesse também interesses imediatos, como se técnicos e estudantes não existissem permanentemente na universidade e como se de longa duração não fossem os seus interesses enquanto categoria.

A luta pela construção de sistemas paritários deve ser encampada não apenas numa frente interna às universidades, mas articuladamente travada também no plano nacional em razão dos constrangimentos legais que ameaçam sua implementação e funcionamento inscritos no artigo 56, parágrafo único, da LDB e cujo teor é de saída contraditório ao conceber como possibilidade de “gestão democrática” um sistema em que docentes ocupam 70% dos assentos em órgãos colegiados e comissões, valendo a mesma proporção para a escolha de dirigentes; in verbis:

“As instituições públicas de educação superior obedecerão ao princípio da gestão democrática, assegurada a existência de órgãos colegiados deliberativos, de que participarão os segmentos da comunidade institucional, local e regional. Parágrafo único. Em qualquer caso, os docentes ocuparão setenta por cento dos assentos em cada órgão colegiado e comissão, inclusive nos que tratarem da elaboração e modificações estatutárias e regimentais, bem como da escolha de dirigentes.”

Não se trata apenas de um regramento contraditório em termos, mas contrário ao princípio da autonomia universitária estabelecido pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 207, que assim a define: “As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.”

Trata-se, mais amplamente, de uma luta pelo reconhecimento de que funcionários técnico-administrativos e discentes são iguais a professores, em termos de gozo de direitos e na capacidade de vocalização de seus interesses, ainda que na comunidade acadêmica seus papéis sejam distintos.

O critério paritário, ou seja, aquele no qual as eleições e a composição de colegiados superiores e comissões obedeçam a proporção de 1/3 para cada categoria, tem sido utilizado, em parte, pelo próprio governo federal, como atesta a lei nº 11.892 de 2008 que criou 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFETS)  e que assim definiu o processo de consulta para reitores:

“Art. 12. Os Reitores serão nomeados pelo Presidente da República, para mandato de 4 (quatro) anos, permitida uma recondução, após processo de consulta à comunidade escolar do respectivo Instituto Federal, atribuindo-se o peso de 1/3 (um terço) para a manifestação do corpo docente, de 1/3 (um terço) para a manifestação dos servidores técnico-administrativos e de 1/3 (um terço) para a manifestação do corpo discente”.

Some-se a isso o fato de, em 2013, 44% das universidades federais já utilizarem sistemas paritários nas consultas às 3 categorias para eleições de diretores e reitor, à revelia do que reza a LDB; apesar de nos conselhos centrais seguirem composições assimétricas.

Mas é preciso sublinhar que, na contramão das mudanças, cerca de 120 professores da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA) denunciaram ao Ministério Público Federal, recentemente, ilegais as decisões tomadas pelos conselhos paritários ali implementados, saindo em defesa draconiana do fiel cumprimento da LDB. O precedente revela a necessidade de que se reconheça o imperativo da luta pela revisão dos termos da Lei 9.394 de 1996, especificamente pela revogação do parágrafo único de seu artigo 56 e, mais amplamente, de uma reforma universitária que prime pela efetividade de práticas democráticas.

Tamanho desafio deve ser enfrentado pelas entidades que representam os interesses de todas as categorias que compõem a comunidade universitária: o ANDES-SN (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior), a ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), a FASUBRA (Federação dos Sindicato de Trabalhadores Técnico-Administrativos em Instituições de Ensino Superior Públicas do Brasil), o movimento estudantil organizado e setores organizados da sociedade civil, para que decisões paritárias não sigam fragilizadas e sob perene risco de serem judicializadas e reformadas, seguindo a tendência da conversão de questões políticas em problemas legais, silenciando com isso as discussões políticas quando deslocados os problemas da comunidade universitária para os tribunais, impenetráveis ao debate público.

Some-se a isso a falta grave de consenso em meio à categoria docente quanto à paridade, um notável grau de despolitização que fere de morte a comunidade acadêmica e que culmina em fóruns esvaziados para discussão desses temas, bem como o histórico abismo que aparta a universidade brasileira de seu entorno social.

Não se pode, contudo, vincular a ideia de democracia universitária pura e simplesmente à configuração dos processos decisórios que definem seus quadros dirigentes, colegiados e comissões. Edward Said (2004, p. 41) já alertara para a necessidade de implementação de práticas democráticas para muito além da realização de eleições: “Por mais que a pessoa seja a favor das eleições não se pode fugir da verdade amarga de que elas não produzem automaticamente democracia ou resultados democráticos”. Apesar de a adoção de um sistema paritário para a realização de processos eleitorais, bem como para a composição e funcionamento de órgãos e instâncias colegiadas na universidade, serem importantes passos em direção à democratização das universidades, não constituem o todo.

Parte do problema passa pelo uso de espaços coletivos para a articulação de interesses pessoais. Não se pode falar em democracia representativa quando representantes de uma categoria, num Conselho Universitário, congregações ou quaisquer colegiados, votam de acordo com sua posição pessoal e sem consultar suas bases, como se seu mandato lhes conferisse o direito de impor sua vontade sobre seus pares. Se a política é o espaço do dizer, deve ser também o lócus do ouvir e, para isso, a “ágora” precisa ser ocupada por muitas vozes, desde reuniões de colegiado de cursos às assembleias gerais.

Isso porque práticas democráticas são construídas em relações sociais, no cotidiano onde o espaço público, como nos recordara Hannah Arendt (2002, p. 7 a 33), é tal qual a “ágora”: o espaço do dizer a política, portanto da política como ato de falar, ou seja, de vocalização de interesses dentre os pares que não apenas ouvem, mas tomam parte da política como “diálogo”. Para que isso ocorra, nem a democracia da “polis” e nem aquela que concebeu o abstrato “homem universal” do iluminismo nos interessam: é preciso uma democracia de alta intensidade para indivíduos concretos, plenos, em condições simétricas e isonômicas para a vocalização de seus interesses; e não se procede tamanha mudança sem que no ambiente universitário sejam implementadas práticas com vistas à superação de muitas das contradições vigentes em sociedade, sabendo-se da tendência inexorável de que elas sejam reproduzidas em seus ambientes. Significa lutar contra a lógica privatista e a implementação de cursos pagos que evidenciam os cortes de classe, raça e gênero em seus ambientes, contra a discriminação racial, contra a xenofobia, o sexismo, o machismo, a homofobia e a transfobia, a intolerância política, geracional e de classe, o assédio moral e tantas outras práticas inclusas na vigente cultura de ódio que marca a ferro o mundo da expropriação da própria humanidade daqueles considerados subalternos.

Mais ainda que isso, não se trata apenas de viabilizar meios para uma participação efetiva das três categorias que compõem a universidade, internamente, nos seus processos decisórios e em seu cotidiano; mas de projetá-la para além de seus muros e grades em direção à sociedade que demanda conhecimento crítico e transformador da realidade e que também deve participar de seu cotidiano. Para isso é necessário cunhar uma nova cultura universitária onde a juventude pobre e excluída, além de outros perfis comumente desprezados pela universidade pública, sejam incorporados ao ambiente universitário. Nessa nova cultura universitária não caberia mais o preconceito daqueles que costumem caracterizar atividades de extensão como de menor importância, sendo seus realizadores classificados como docentes de segunda categoria; a integração do tripé ensino-pesquisa-extensão não pode se limitar às aparências: é preciso fazê-la no mundo da prática!

É por isso que quando jovens pobres são expulsos de um dos nossos campi, como o que ocorrera em novembro do ano passado no Campus Baixada Santista da Universidade Federal de São Paulo (de acordo com registro de ocorrência policial lavrado pelo 4º Distrito Policial de Santos) temos a obrigação moral de denunciar e de cobrar providências, tanto quanto nos solidarizarmos aos alunos que vêm sendo perseguidos por meio de procedimento policial (em trâmite na Polícia Federal), por terem denunciado o ato gravando sua indignação em uma porta, que parece importar mais que os pobres meninos escorraçados da universidade que é também deles.

Enquanto em seus corredores, ambientes estudantis, de organização de técnicos-administrativos em luta por direitos e salas onde docentes experimentam saberes transformadores da realidade, habita o “espírito novo” dito por Mariátegui; em suas estruturas mais profundas segue incorporado o espírito autoritário que se vale das desigualdades para sua perpetuação. Parte da luta pela transformação dessas estruturas é a destruição dos estereótipos que identificam práticas democráticas, na administração pública, como ineficazes; ao passo da associação entre eficácia e autoritarismo, do que resulta uma fragilíssima justificativa para as tão comuns gestões autoritárias, insensíveis às demandas daqueles que não têm direitos e enclausuradas em seus gabinetes como se fossem torres de um impenetrável castelo, devidamente fortificado contra as “classes perigosas”.

Quando os destinos da universidade são geridos de forma autoritária os lugares da “ágora” são cerceados, os que ousam dizer a política são amordaçados e a recusa da política, enfim, implica no fim da própria política, na instituição do favor e de demais elementos que constituem o âmbito privado impondo-se determinantemente sobre o interesse público. É neste ambiente que a exaltação da técnica e a satanização do pensamento crítico, acusado de ideológico, opõem academia e política em nome da falácia da “neutralidade”, esta que sustenta os elementos da conservação.

“Com quantos quilos de medo se faz uma tradição?” Lembro-me do trecho da música de Tom Zé pichado no muro da Reitoria da Universidade de São Paulo, nos idos de 2007, durante uma das mais longevas e politizadas ocupações estudantis de sua história recente, movendo-se contra as truculentas e desastradas políticas do Estado de São Paulo para a educação superior pública na gestão do então governador José Serra. Nos muros de muitas universidades brasileiras a frase segue fazendo sentido. Isso porque gestões autoritárias educam historicamente pela coerção e quem obedece, tal qual o modelo educacional ovacionado pelos saudosos da ditadura militar, obedece porque tem medo (o que inclui o medo de não se formar, não obter bolsa, não ingressar na pós-graduação, não obter bolsa de novo, não publicar, não concursar-se professor, não obter bolsa mais uma vez, não ascender na carreira docente e, para que tudo isso seja viável, não desagradar àqueles em condição de poder). Atualmente, o medo vem sendo progressivamente manejado por meio de procedimentos policiais, instrumento para persecução da militância estudantil na lógica ampliada da criminalização dos movimentos sociais e de quaisquer segmentos despossuídos em luta por direitos. A educação para o medo, nos recordam Duarte e Rampinelli (2005, p. 40 e 41), forma seres acríticos, submissos e que se calam, ou seja, que abdicam da palavra, da própria política. Na ausência do pensamento crítico, a universidade não apenas deseduca politicamente seus alunos: ela deixa de formar intelectuais, ocupando-se da produção em série de analistas convictos de sua própria neutralidade, de pilhas e pilhas de papers (que dificilmente serão lidos) e páginas e páginas de currículos.

Para a gestão autoritária o interesse público sequer é percebido e a democracia que lhe serve é uma espécie de “dança cortesã” para a qual são ensaiados os passos e, em forma, apresenta-se tão somente o formalismo vazio que encena a participação coletiva, como rezam seus regramentos. Não raras vezes questões vitais para os cursos e para a comunidade acadêmica acabam decididas, senão por um, por dois ou três membros de uma espécie de “confraria para iniciados”, cujo rito iniciático envolve pactos de fidelidade e conveniência; no entanto, quando publicizadas, assumem a forma (e tão somente a forma) de escolhas coletivas, seguindo os regimentos no compasso das burocracias e sem que escolhas coletivas tenham verdadeiramente existido. Em termos concretos, como nos recordam Duarte e Rampinelli (2005, p. 32): “democracia diz respeito também à passagem do poder privado e despótico, fundado na vontade pessoal e na arbitrariedade do chefe, para o poder como discussão coletiva e deliberação pública sob o domínio das leis”.

A coletividade deve se apresentar de forma organizada, para muito além da habitual mise-en-scène, na defesa e luta pelos direitos de suas três categorias contra qualquer tipo de autoritarismo. Uma universidade democrática, em uma sociedade eivada de contradições, depende de mobilização perene e de capacidade de enfrentamento na luta por direitos, em franco processo de desmonte dada a recente intensificação das reformas neoliberais e o sempre crescente individualismo associal absoluto.

No que concerne à carreira docente, as condições de trabalho de professores do ensino superior no Brasil vêm sendo sobredeterminadas por um sistema de ensino superior servil aos interesses dos grandes conglomerados econômicos da educação que, convertendo o ensino em negócio na lógica do lucro privado, têm contribuição quase nula para o desenvolvimento científico nacional. Sendo raquítico seu protagonismo na senda da pesquisa, a avassaladora maioria dessas instituições faz agravar ainda mais a precarização do trabalho docente reduzindo o professor a condição de mero “dador de aulas”, com carga horária inadequada aos padrões de excelência acadêmica e turmas com um número de alunos muitíssimo superior ao ideal, restando-lhe quase nenhum tempo para o desenvolvimento de pesquisas e de práticas extensionistas, para salários sofríveis e relações laboriosas onde o “assédio moral” não é nada incomum. Nesse tipo de ambiente generalizou-se ainda a prática da demissão de docentes quando estes tenham obtido seu doutoramento, a fim de que as universidades privadas paguem os menores salários possíveis.

A lógica privatista, na confusão reinante entre público e privado, adentra a universidade pública por meio das fundações ditas de apoio à pesquisa, do dirigismo das agências públicas de fomento à pesquisa e os critérios produtivistas que vêm impondo, o carreirismo que solapa o pensamento crítico, cada vez mais raro, a oferta de cursos pagos que ora chega da extensão à pós-graduação (tanto lato quanto stricto sensu), estes louvados como instrumentos para a superação da crise em que se encontra mergulhada a universidade pública no Brasil, vitimada nos últimos e dramáticos meses pelo gravíssimo contingenciamento de verbas e o brutal descompasso entre a expansão do ensino superior público e uma dotação orçamentária que não tem crescido no compasso da demanda.

Os interesses privatistas se valem de leis como a 10.973/2004, que versa sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo; bem como a 11.079/2004, que institui novas normas gerais para licitação e contratação de parceria público privada, as “PPP’s”; do sistema PROUNI que acentua o processo de transferência de fundos públicos para o setor privado da educação superior (que também se vale de uma série de isenções fiscais e anistias); e, mais recentemente, da decisão do Supremo Tribunal Federal, emanada nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1.923, proposta contra a Lei 9.637/98 e que autoriza contratação, pela Administração Pública, de prestadores de serviços via Organizações Sociais sem concurso público, sem estabilidade funcional e sem regime de dedicação exclusiva ao ensino, pesquisa e extensão.

A universidade pública (vocacionada à produção de conhecimento e onde estão alocados, ainda, os meios para a consecução da pesquisa científica no Brasil) estaria, com isso, em consonância com o mercado e com os interesses da iniciativa privada, esta que, por sua vez e tanto na esfera produtiva quanto educacional, pouco ou nada investe em pesquisa.

Trata-se da já conhecida disputa pelos cofres públicos, frente à qual as esferas da alta política assumem claramente a função de privilegiar grupos privados por meio de estímulos a programas direcionados exclusivamente aos interesses do mercado, o que afronta o princípio da autonomia universitária tanto quanto subverte os objetivos gerais da educação superior pública uma vez que, na lógica da apropriação privada da pesquisa sediada nas universidades públicas, o conhecimento não resulta transferido à sociedade que custeia, por meio de impostos, a própria universidade; mas é convertido em mercadoria e vendido a ela. Determinam-se, com isso, os poderes que definem os rumos da universidade: o mercado, interessado em manter cursos com maior apelo comercial e que, com isso, sejam capazes de arrecadar mais dividendos.

Não que a presença de grupos que representam interesses do mercado, na universidade pública, seja nefasta, sobretudo em cursos ligados a área de negócios; a pluralidade de ideias é que deve alimentar o ambiente acadêmico e dar sentido ao próprio conceito de universidade. Formar o alunado para o mundo e, nele, para o mercado de trabalho, passa inexoravelmente pelo desenvolvimento de habilidades técnicas, desde que acompanhadas de conteúdos humanísticos que capacitem o pensamento crítico sobre a função social da técnica em sociedades profundamente desiguais. O mesmo pode-se dizer quanto a necessidade de estabelecimento de parcerias com empresas comprometidas com a inserção profissional dos discentes, sem que com isso tenham que se submeter a condições precarizadas de trabalho. O problema se apresenta quando interesses privados se impõem sobre a missão histórica da instituição; mais ainda quando em nome desses interesses determinados grupos se fecham ao pensamento crítico, tentando extirpar de seus ambientes quaisquer dissidências.

Com isso, o vetor do conhecimento acadêmico, passando a ser o vetor dinheiro, é impedimento dos mais graves à democratização do ambiente universitário.

Mas não é apenas o processo de desmonte de direitos históricos dos trabalhadores da educação, a precarização das condições de trabalho e o afã de muitos em transformar unidades de ensino, nas universidades públicas, em balcões de negócio, que preconizam a penetração do ideário neoliberal no universo acadêmico: há ainda seu revestimento no plano ideológico. Para Marilena Chauí (2001, p. 23) este procedimento assume a forma das proposituras pós-modernas, batendo-se contra os próprios fundamentos da modernidade: “as ideias de racionalidade e universalidade”, tomados como mitos totalitários exógenos à nossa realidade. É o tempo do individualismo associal e da incapacidade de indivíduos egocentrados perceberem-se como partícipes de grupos que mantêm interesses comuns.

Nas universidades, o individualismo se expressa na tríade elementar do carreirismo: “minha pesquisa”, “minha bolsa”, “meu currículo”, que movem as preocupações centrais de parte significativa de professores desinteressados pelas bandeiras de sua própria categoria, avessos ao movimento sindical e desencarnados da universidade, alienados das lutas que vêm sendo travadas em defesa de seu caráter público, gratuito e democrático.

Para Carlos Nelson Coutinho (2004, p. 329), “… nesse quadro, vem a afirmação de que a luta de classes, a luta mais universal, perdeu o sentido, não existe mais. Com maiores ou menores mediações, o pós-modernismo é a super estrutura ideológica da contra-reforma neoliberal”.

Diz-se, com isso, que não há luta de classes e que sequer classes sociais existem, tampouco sociedades; em seu lugar há indivíduos e tão somente isso.

Ao dizer que não há contradições, elas jamais deixarão de existir. Não dizer, resulta no mesmo! Mas é no silêncio que ecoam tanto o medo quanto a conveniência, reverberando em espaços vazios, despolitizados e que carecem urgentemente serem ocupados. E a tarefa é de fato premente; isso porque esses e muitos outros caracteres nos permitem identificar uma tendência geral à reafirmação dos traços autoritários e oligárquicos que constituem o sistema universitário nacional desde os seus fundamentos, enquanto a dureza dessa realidade recebe o revestimento fantasioso da retórica democrática, desde que não haja democracia de fato e que a Santa não seja demovida de seu altar, mesmo na impossibilidade de operar qualquer tipo de milagre.

 

Referências bibliográficas:

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